Marcos Pereira on-line

24 outubro 2004

Despedidas e não-despedidas


Uma idéia original, um roteiro levemente não-linear, atores aparentemente escalados inapropriadamente para os papéis e uma pérola musical regravada pelo Beck fazendo a trilha sonora. Tudo isto, batido no liquidificador, e o resultado é o sensacional filme “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”. Ah! A música é “Everybody’s Gotta Learn Sometimes”. O Beck imprimiu uma doçura impressionante à (já) melosa balada, sucesso do Korgis, que tocava incessantemente na Difusora (AM 960 Khz, São Paulo), no início dos anos 80.

Vamos dar nomes aos bois. Os atores são o Jim Carrie, conhecido pela sua verve cômica, e a titânica atriz Kate Winslet. O argumento é o seguinte: ela é extrovertida, ele, contido. Eles se apaixonam, se enamoram e rompem o relacionamento. Ele sofre e, ao procurá-la para tentar reatar, não entende a indiferença com que ela o trata, como se não o reconhecesse. E não reconhece mesmo! Isto porque ela foi submetida a uma “cirurgia” que eliminou as lembranças dele no cérebro dela. Na véspera do Valentine´s day (dia dos namorados), ele descobre a “cirurgia mágica” e faz o mesmo. Paro por aqui. A trama é envolvente e as peças do quebra-cabeça se encaixam no final numa seqüência bem legal.

Li por aí que o roteirista do filme é o mesmo do non-sense “Quero ser John Malcovich”. De novo ele acertou a mão em cheio. E, de pano-de-fundo, toca em algumas questões instigantes. Inclusive uma delas foi “pauta” de uma sessão superinteressante de terapia: a não-despedida. A tese era sobre a necessidade de se marcar um fim, após uma separação. Antes uma despedida realizada, ainda que dolorosa, que fantasmas persistentes a vagar pelo inconsciente. A despedida encerra um período, a passagem de uma, algumas ou várias pessoas pelas nossas vidas. E, por que não, de renovação? A sobrevivência das espécies não estaria diretamente ligada à capacidade de adaptação e mutação e, conseqüentemente, da renovação?

Teorias de Darwin à parte, o filme me fez lembrar da música “Encontros e Despedidas”, tema da novela das 8 na (desanimada) releitura da Maria (ir)Rita para a música do Milton Nascimento, gravada primeiramente pela Simone no LP Corpo e Alma, em 1981. Nesta época eu morava em Santos e os meus primos de São Paulo passavam as férias lá e, vice-versa, a minha família subia a serra. Na despedida, era aquele aperto no peito. Calhou de uma destas despedidas coincidir com o sucesso da música no rádio. A música, como de costume, ditava a marcação do ritmo da vida.

Mais recentemente, no meu último dia em Kamloops (Canadá), a cidade que me acolheu durante alguns meses, olhei de uma forma diferente para os mesmos lugares que compuseram o cenário daquele verão de 2001. Naquele dia eu sabia que dificilmente tornaria a vê-los. Simples cruzamentos de rua, fachadas de supermercados e fast-foods, por algum tempo fizeram parte do meu mundo. E, dali por diante, seriam apenas memórias de terras longínquas.

No bojo de toda esta questão, eis que ligo a TV e, casualmente, zapeando pelos canais, parei no GNT, que exibia o “Saia Justa” número 100. A edição comemorativa marcou a despedida da Rita Lee do programa. A Rita, com o seu estilo irreverente, fazia contraponto em relação às outras apresentadoras. Entre as várias homenagens rendidas à roqueira-mor do Brasil, a produção do programa criou um videoclipe com colagens de cenas de despedidas de vários filmes, entre eles, Dr. Jivago, ET, Central do Brasil e Procurando Nemo. E a música de fundo foi “Cartão Postal”, da própria Rita no início da carreira solo, pós-Mutantes. “Cartão Postal” é um rock com levada blues, muito bem executado pela banda que acompanhava a Rita Lee, o Tutti-Frutti. Aqui vai alguns versos: “(...) O adeus traz a esperança escondida / Pra que sofrer com despedida / Se só vai quem chegou / E quem vem vai partir (...)” . Caiu como uma luva no clipe e no clima emotivo do programa.

Mesmo nos seriados de TV é bastante comum um último capítulo. Foi assim com os seriados japoneses de monstros Ultra-Seven, Robô Gigante e Vingadores do Espaço. Também com as sitcoms Seinfeld e Friends. Ao contrário destes, o espetacular desenho animado “A Caverna do Dragão” não teve um fim e na internet circulam até hoje algumas versões conspiratórias sobre um suposto fim que não chegou a ir ao ar.

Enfim, mais doloroso que a despedida, são as reticências mudas. Ou seja, quando não há o rito e as palavras e gestos não se concretizam, ainda que num simples aceno de mão. O luto latente que não se consumou, não marcou o fim, gera uma incômoda sensação de que não foi pleno, como um coito interrompido.

The End.


P.S.I. Caloi 10 dourada, modelo Sprint. Ela não foi encostada num canto qualquer da casa, nem vendida. Ela fatidicamente foi-me subtraída. Uma das minhas maiores companheiras da adolescência, a bike dourada foi roubada num sábado à noite de 1987, no antigo Jumbo-Eletro, hoje Pão-de-Açúcar, em frente ao Posto 2, em Santos. Circulei por horas nos arredores do supermercado, sempre retornando ao local onde a havia deixado. Custei a acreditar, mas um elo da corrente que a prendia, caído no chão, denunciava o delito. A nossa convivência durou pouco mais de um ano. Tempo suficiente para cruzarmos a cidade de Santos várias vezes, de ponta a ponta, norte- sul, leste-oeste. Caloi 10 dourada, esteja onde estiver eu não a esquecerei jamais. Você foi uma extensão do meu ser, em forma de 2 rodas.

P.S.II. Meu primeiro Gradiente, modelo, DS 800. Um dos últimos da geração de aparelhos de som domésticos, com recursos tais como equalizador gráfico com ajustes independentes por faixa de freqüência e loudness. Lembro como hoje o dia em que nos vimos pela primeira vez. Os meus olhos reluziam de contentamento. Aquele era o tão sonhado aparelho de som, que eu paquerava nas vitrines das lojas. Com os meus primeiros salários de estagiário, comprei o tão desejado objeto de deleite. Quando me mudei para São Paulo, só o encontrava nos fins-de-semana, na casa da minha mãe. Em menos de 1 ano não suportei a separação e o trouxe para morar comigo em definitivo. Tudo caminhava bem até que, certo dia, recebo um telefonema do Alexandre, amigo com quem eu dividia o saudoso apartamento na rua Augusta. O apartamento fôra roubado. Aquela notícia ao mesmo tempo me deixou triste e revoltado. Passado alguns anos, não guardo mágoas. A minha esperança é que pelo menos os graves, médios e agudos emitidos pelo aparelho levem vibrações positivas para aqueles que o tiraram de mim. DS 800, o primeiro aparelho estereofônico a gente nunca esquece.

P.S. III. Uno Mille verde-água, placa BOH 9831, meu primeiro carro. Foi numa manhã de segunda. Eu subia a via Anchieta rumo a São Bernardo do Campo. Já no trecho de planalto, Km 18, saída para a cidade, amadorísticamente passei do ponto e forcei o volante para a direita, numa manobra impossível. O carro, desgovernado, acabou por tombar na curva. Dias depois recebi a triste notícia da seguradora: perda total. O moço disse que a estrutura do carro fôra muito danificada e, caso tentassem recuperá-lo, a estabilidade estaria comprometida pelo resto de suas quilometragens. Foi melhor assim. Espero que as suas peças tenham sido reaproveitadas em outras carros, fazendo outros proprietários tão felizes quanto eu fui. Por 8 meses vivemos uma intensa relação. Ele foi cúmplice de várias barbeiragens, típicas de iniciante, e me descortinou um mundo novo, com várias possibilidades nunca antes sequer cogitadas por mim. Jamais esquecerei daquele tour, em 1995, pelo litoral norte de São Paulo até a região dos Lagos, no Rio. Ali eu percebi que poderia ir muito mais além. E você, Mille, esteve comigo o tempo todo, firme, forte e robusto. Só tenho uma palavra a dizer: obrigado.


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