A triste partida, um épico nordestino
O som do carro deu pau! Nem rádio, nem iPod.
Os sinais vitais do aparelho se manifestam apenas quando lhe é introduzido (com
todo respeito) uma mídia de CD. E mais: só tenho controle do botão de volume e
as faixas são tocadas sequencialmente. Aproveitei a oportunidade para
relembrar a experiência de ouvir música como no século XX, pausadamente,
esperando pacientemente pela chegada "daquela" favorita. Que nem,
tipo-assim, amiga, na época da fita cassete.
Em meio a algumas pilhas de CDs, esparramadas
por sobre o banco do passageiro, catei, certeiramente, um "The Very Best
of Luiz Gonzaga". E lá vem "Asa Branca", clássico absoluto do
cancioneiro popular brasileiro, que retrata as mazelas do cenário desértico do
semiárido nordestino.
Mas, a música que vem depois, "A triste partida", vai além da descrição de um desolado ambiente seco de um semiárido
esquecido ..., de pessoas esquecidas ..., num país esquecido, abandonado à
própria sorte. A música narra a saga de uma família retirante que, não
tendo mais como viver, ou melhor, sobreviver àquela situação desumana, se
vê obrigada a deixar sua terra em busca de uma condição de vida minimamente
sustentável (sim, o termo "sustentável" também se aplica ao
humano, parte integrante do meio ambiente) no "sul maravilha",
especificamente em São
Paulo.
Não somente isso. Deixa para trás sua
identidade, cultura, história, laços e vínculos ao seu lugar de origem para se tornar
mais uma, entre tantas famílias, condenadas a viver (ou morrer) nas periferias
dos grandes centros urbanos, reduzidas a frios índices estatísticos,
subexistindo num sublugar, subjulgada a condições indignas de vida.
Simplesmente ocorre um deslocamento geográfico da miséria, que se traveste e
transmuta de região.
No documentário "O milagre de Santa
Luzia", o Dominguinhos conduz a história da sanfona no Brasil. Ele passeia
por vários Estados, identificando e explicando as diversas influências e
sotaques do instrumento, muito bem adaptado à terra brazilis. Ma-ra-vi-lho-so
(assisti na tela grande, no saudoso "Belas Artes", que vai voltar; êba!).
Numa cena emocionante, o Dominguinhos chora ao relembrar sua história, similar à da música
“A triste partida’, regravada por
ele.
Emigrantes do interior de Sergipe para o
litoral paulista (província de Santos), meus pais não passaram pela triste partida. Ainda
assim, carregam consigo o inconsciente coletivo do ritual, pois estavam muito
próximos daquela realidade. Diz minha mãe que meu pai chorava, sempre que
ouvia a música (PQP! Santo Roy Orbison [http://mp-online.blogspot.com.br/2013/01/crying-pela-volta-das-cancoes.html], Batman! Quantos posts-chororôs neste blog!).
Muitas coisas mudaram no Brasil, desde quando
a música foi escrita até hoje. Mas, no plano da pobreza, o que mudou, de fato, foi a
forma de exploração, mais sutil e disfarçada que antes. A
estrutura dominante que consagra uma pequena elite econômica permanece perversa. Até quando?
Viva o retirante nordestino!
Viva o seu Vitório (meu pai, in memoriam)!
Viva o tio Mané!
Viva a Consuelo!
Viva o Gabriel!
E viva Zapata!
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PS:
A Consuelo, uma senhora jovem, tem como um dos objetivos de vida
florestar o sertão nordestino. (Noutro contexto, mas me lembra um episódio do South Park, no
qual o Cartman, para ganhar de Natal um videogame, precisa quitar seus débitos
de más ações com algo grandioso. Por exemplo, descobrir a cura da Aids ou levar
o espírito de Natal ao Iraque, no auge da guerra contra o terrorismo, pós 11 de setembro. Acho
que já escrevi sobre isso, vou "dar" um Google no blog). Quando eu crescer, eu quero ser
que nem que ela.
PS II:
O Gabriel, quando tinha 8 anos, falou pra mãe dele "a
minha missão na vida é salvar crianças através da alimentação saudável". Hoje ele tem 11.
Quando eu crescer, eu quero ser que nem que ele.
PS III:
O poema "A triste partida", musicado por Luiz Gonzaga é de autoria do poeta Patativa
do Assaré. Chama atenção a narrativa extremamente visual, concisa e aguda (dói na alma),
reproduzindo com rara precisão o lamento sertanejo em seu estado mais bruto e cruel ...
“(...)
Já outro
pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
Ai, ai, ai, ai
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
Ai, ai, ai, ai
E a linda
pequena
Tremendo de medo
"Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?"
Meu Deus, meu Deus
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
Ai, ai, ai, ai (...)”
Tremendo de medo
"Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?"
Meu Deus, meu Deus
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
Ai, ai, ai, ai (...)”
... e encerra, de forma contundente, botando o dedo na ferida:
“(...)
Faz
pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Ai, ai, ai, ai”
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Ai, ai, ai, ai”
PS IV:
Putz! Me restam mais 52 verões no planeta Terra. Gostaria de proporcionar felizes regressos neste tempo. Tem alguém aí?
PS V:
Embora, ainda que, apesar de, e outras conjunções/locuções adverbiais concessivas, como tão bem cantou Roger Waters, "I like to be here".
3 Comentários:
Às 12:00 PM ,
F.I.O.N.A. disse...
KKK querido Marcos, obrigada pelo de "uma jovem senhora". Por acaso vc é professor de Português? Vc me surpreende pelo teu modo perfeito de escrever. O sertão mudou. Agora tem aqui grandes orfanatos (creches) para que as mães (quase todas solteiras) não criem mais seus filhos mas que engrossem as fontes de produção de ben$. Enquanto isso as crianças engrossaram, ao chegar na adolescência, as filas de toxico-dependentes ou de deprimidos ou até delinquentes. Mas nada é perfeito infelizmente. Beijo
Às 12:01 PM ,
F.I.O.N.A. disse...
perdão é "engrossarão", ao chegar na .....
Às 9:16 PM ,
Marcos Pereira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
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