Marcos Pereira on-line

06 abril 2005

A Suzana, o presente do tio Mané e o Tom Zé

O presente do tio Mané começou a ser gestado, sem que eu me desse conta, na noite de um dia duro de trabalho. Cá na minha profissão, padeço de um cansaço, por vezes crônico. Quando ele (o cansaço) me consome em níveis críticos, eu tento desligar o botão ‘power’ interno, ligando o power da TV, rádio e/ou Winamp. Neste estágio, a cabeça continua funcionando e ávida por informação áudio-visual, mesmo que esta não seja digerida na sua plenitude. Paulatinamente (adoro este advérbio), a mente cede e aquieta à medida que outros sons, imagens e vibrações desconstroem o anterior padrão de pensamento obsessivo que persistia em se repetir.

Naquele noite específica, deixei a TV ligada no programa Metrópolis da TV Cultura. Adormeci e lá pelas tantas fui ‘acordado’ por uma inusitada versão da clássica cantiga guarania ‘Índia’. Quando eu já quase desfalecia num sono profundo, um lindo arranjo de viola e uma voz feminina penetraram em meu inconsciente, provocando uma agradável sensação de prazer. O consciente entra em ação e ‘percebe’ que a música não vinha de um sonho e sim da TV. Ao me virar da cama para descobrir quem estava cantando, era tarde demais; o Metrópolis acabava de acabar. No dia seguinte enviei um e-mail para o programa e eles me responderam que a dona da voz que me acordou é a Suzana Salles. Nunca ouvira este nome antes. Procurei na internet e encontrei pouquíssimas referências sobre ela. Memorizei o nome da Suzana para comprar qualquer coisa dela na ‘Baratos Afins’, a loja especializada em MPB da galeria ‘dos mano’.

Desde então já se passaram alguns meses até que, no fim-de-semana passado, no Guia da Folha, o nome da Suzana apareceu duas vezes. A primeira, anunciando as apresentações que ela faria na sexta e no sábado. Na sexta-feira fui conferir de perto lá na galeria Olido, centrão de São Paulo. Ufa! Após cruzar as calçadas coalhadas de bancadas de camelôs, consegui chegar são e salvo no endereço da avenida São João. Cheguei atrasado, mas exatamente na hora em que a Suzana cantava a bela ‘Índia’. Ela compartilhava o palco com um barítono de voz poderosa e um violeiro bastante competente no seu instrumento. Na saída, o CD com o repertório caipira do show estava à venda. Claro, pensei comigo mesmo! Eu estava diante do presente perfeito para o tio Mané, que faz aniversário no dia 9 de abril. E nem vou precisar dispender tempo em buscas frenéticas pelos shoppings da cidade.

A segunda referência à Suzana no Guia era sobre a participação especial que ela faria no show de lançamento do novo CD ‘Estudando o Pagode – Na Opereta SegregaMulher e Amor’ do Tom Zé. Aí no sábado eu dei um pulo lá no (novo) Sesc Pinheiros. Figura estranha, representativa do tipo patinho feio, que voltou à cena pelas mãos do ‘mecenas’ David Byrne, Tom Zé foi ressuscitado artisticamente graças a um LP encontrado pelo ex-talking head, no meio de vários outros de samba. Daí em diante, o baiano foi catapultado para uma bem-sucedida carreira no exterior. Numa entrevista que ouvi no rádio, o Tom Zé revelou que se não fosse o aparecimento do David Byrne em sua vida, ele teria encerrado a carreira de cantor para trabalhar no posto de gasolina de seu primo, em Irará (BA), sua terra natal. Vejam só os caminhos e descaminhos do mundo. O outrora esquecido Tom Zé, uma das pilastras do Tropicalismo, foi trazido ‘de volta à vida’ num golpe do acaso. Os outros baianos tropicalistas (Gil, Caetano e cia.) que adoram aparecer na mídia, hoje perdem em prestígio para o Tom Zé, na Europa e nos Estados Unidos.

E o show no Sesc? Qual não foi a minha surpresa quando vi a Suzana Salles (com o mesmo vestido colorido que trajava na galeria Olido, no dia anterior) dividindo praticamente todos os vocais com o Tom Zé?. Pensei que ela só faria apenas uma pontinha. Surpreendentemente, o repertório e a postura em palco em nada lembravam à bem comportada apresentação da moça no dia anterior (exceto pela roupa). Do singelo-caipira à vanguarda-tom-zeniana, a Suzana se mostrou bastante versátil e mandou muito bem em ambas as performances. E o Tom Zé, hein? Classifico o cara como um ‘maluco-beleza-cabeça’. No show, ele e a banda ‘intepretam’ as músicas, que são um manifesto contra o papel submisso, segundo o autor, da mulher na sociedade. E o pagode do título do CD entra aí como o primo-pobre da MPB, ou seja, outra instituição discriminada pelo meio.

Impressionante as letras do Tom Zé. Tratam-se de críticas contundentes às sociedades local e globalizada, a qual ele denomina ‘globarbarização’. No final, ele declama um texto retratando a triste realidade da prostituição infantil no nordeste do país, do ponto de vista de uma suposta menina-vítima explorada pelo turismo sexual. Nada que li, vi ou ouvi até hoje sobre o assunto foi capaz de causar tanta reflexão e repúdio em mim quanto aquele texto. Tom Zé é o cara! O ex-patinho feio que continua feio ... e mais instigante e criativo do que nunca.


----------------------------------------------------------------------------------

P.S. No sábado, ao comprar o ingresso para o show do Tom Zé no Sesc Vila Mariana, no vão livre acontecia um show do grupo de samba-rock ‘Sambasonics’. Olhando de cima, a vocalista parecia ser uma loirinha. Ao descer as escadas, a loirinha se revelou uma loiraça. E ainda por cima cantava. E muito bem! Desde então, o meu sonho de consumo não é uma Ferrari e sim a loira Christina Herlander. Black is beautiful, blondie is amazing!

P.S. II: E dá-lhe mais Tom Zé. Na segunda-feira ele foi o entrevistado do programa ‘Roda Viva’. Mais tarde, no Jornal da MTV, lá estava ele de novo sendo entrevistado pelo Rafa, o VJ mais cabeça-oca da MTV. Foi muito engraçado o contraste de duas figuras diametralmente opostas. De um lado o Rafa, confuso até mesmo para articular as perguntas e, do outro, o super-cabeça Tom Zé, viajando na maionese intelectual. Resultado: foi uma anti-entrevista. Não saiu coisa com coisa daquela conversa.
P.S. III:
FELIZ ANIVERSÁRIO, TIO MANÉ!!!