Marcos Pereira on-line

19 janeiro 2014

A triste partida, um épico nordestino




O som do carro deu pau! Nem rádio, nem iPod. Os sinais vitais do aparelho se manifestam apenas quando lhe é introduzido (com todo respeito) uma mídia de CD. E mais: só tenho controle do botão de volume e as faixas são tocadas sequencialmente. Aproveitei a oportunidade para relembrar a experiência de ouvir música como no século XX, pausadamente, esperando pacientemente pela chegada "daquela" favorita. Que nem, tipo-assim, amiga, na época da fita cassete.
  
Em meio a algumas pilhas de CDs, esparramadas por sobre o banco do passageiro, catei, certeiramente, um "The Very Best of Luiz Gonzaga". E lá vem "Asa Branca", clássico absoluto do cancioneiro popular brasileiro, que retrata as mazelas do cenário desértico do semiárido nordestino. 
  
Mas, a música que vem depois, "A triste partida", vai além da descrição de um desolado ambiente seco de um semiárido esquecido ..., de pessoas esquecidas ..., num país esquecido, abandonado à própria sorte. A música narra a saga de uma família retirante que, não tendo mais como viver, ou melhor, sobreviver àquela situação  desumana, se vê obrigada a deixar sua terra em busca de uma condição de vida minimamente sustentável  (sim, o termo "sustentável" também se aplica ao humano, parte integrante do meio ambiente) no "sul maravilha", especificamente em São Paulo.

Não somente isso. Deixa para trás sua identidade, cultura, história, laços e vínculos ao seu lugar de origem para se tornar mais uma, entre tantas famílias, condenadas a viver (ou morrer) nas periferias dos grandes centros urbanos, reduzidas a frios índices estatísticos, subexistindo num sublugar, subjulgada a condições indignas de vida. Simplesmente ocorre um deslocamento geográfico da miséria, que se traveste e transmuta de região. 

No documentário "O milagre de Santa Luzia", o Dominguinhos conduz a história da sanfona no Brasil. Ele passeia por vários Estados, identificando e explicando as diversas influências e sotaques do instrumento, muito bem adaptado à terra brazilis. Ma-ra-vi-lho-so (assisti na tela grande, no saudoso "Belas Artes", que vai voltar; êba!). Numa cena emocionante, o Dominguinhos chora ao relembrar sua história, similar à da música “A triste partida’,  regravada por ele. 
    
Emigrantes do interior de Sergipe para o litoral paulista (província de Santos), meus pais não passaram pela triste partida. Ainda assim, carregam consigo o inconsciente coletivo do ritual, pois estavam muito próximos daquela realidade. Diz minha mãe que meu pai chorava, sempre que ouvia a música (PQP! Santo Roy Orbison [http://mp-online.blogspot.com.br/2013/01/crying-pela-volta-das-cancoes.html], Batman! Quantos posts-chororôs neste blog!).

Muitas coisas mudaram no Brasil, desde quando a música foi escrita até hoje. Mas, no plano da pobreza, o que mudou, de fato, foi a forma de exploração, mais sutil e disfarçada que antes. A estrutura dominante que consagra uma pequena elite econômica permanece perversa. Até quando?


Viva o retirante nordestino!  
Viva o seu Vitório (meu pai, in memoriam)!
Viva o tio Mané!
Viva a Consuelo!
Viva o Gabriel!

E viva Zapata!
  
===================================================

PS:

A Consuelo, uma senhora jovem, tem como um dos objetivos de vida florestar o sertão nordestino. (Noutro contexto, mas me lembra um episódio do South Park, no qual o Cartman, para ganhar de Natal um videogame, precisa quitar seus débitos de más ações com algo grandioso. Por exemplo, descobrir a cura da Aids ou levar o espírito de Natal ao Iraque, no auge da guerra contra o terrorismo, pós 11 de setembro. Acho que já escrevi sobre isso, vou "dar" um Google no blog). Quando eu crescer, eu quero ser que nem que ela. 

PS II: 

O Gabriel, quando tinha 8 anos, falou pra mãe dele "a minha missão na vida é salvar crianças através da  alimentação saudável". Hoje ele tem 11. Quando eu crescer, eu quero ser que nem que ele.
  
PS III: 

O poema "A triste partida", musicado por Luiz Gonzaga é de autoria do poeta Patativa do Assaré. Chama atenção a narrativa extremamente visual, concisa e aguda (dói na alma), reproduzindo com rara precisão o lamento sertanejo em seu estado mais bruto e cruel ...

“(...) 
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
Ai, ai, ai, ai 
E a linda pequena
Tremendo de medo
"Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?"
Meu Deus, meu Deus
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
Ai, ai, ai, ai (...)”
... e encerra, de forma contundente, botando o dedo na ferida:

“(...)

Faz pena o nortista 
Tão forte, tão bravo 
Viver como escravo 
No Norte e no Sul 
Ai, ai, ai, ai”

PS IV:

Putz! Me restam mais 52 verões no planeta Terra. Gostaria de proporcionar felizes regressos neste tempo. Tem alguém aí?

PS V:

Embora, ainda que, apesar de,  e outras conjunções/locuções adverbiais concessivas, como tão bem cantou Roger Waters, "I like to be here".